A VISITA

A VISITA
Foto: Núbia Rodrigues

quinta-feira, 20 de maio de 2010

POEMA - Da mais tranquila indignação

Hoje eu precisava ir embora.
Sair de casa como quem sai da casca do ovo.
Sair correndo, voando ou mesmo rastejando
Parar em qualquer árvore morta e colher-lhe o fruto mais amargo.

Mas em vez disso
Eu fico com a necessidade
A incontrolável vontade de sair de casa
Enquanto bordo, costuro e lavo
Palavras que não têm sentido.

domingo, 16 de maio de 2010

Poema - As pernas

Que tragédia!
Eu ainda na fase da espiação.
Com meus bons olhos que são dois
Espreito e estreito na fresta da janela
Elas também são duas
E são belas
E caminham nuas frente a minha janela.

Conto - Os incomunicáveis

Caminhava todas as tardes. Não olhava no relógio. Por isso, nunca tinha hora marcada. Secreta, tímida, de olhos negros e baixos. Em casa, quase não falava. Por medo ou indiferença, sempre fora a mais calada.

Para onde ia? Quem soubesse responder a essa pergunta, certamente a faria mudar de rota, caso existisse alguma. Ia para um lugar distante. Com seu par de olhos, olhava as figuras que se esbarravam pelas ruas. Casas, cães, árvores, tudo era filmado pela dupla de vidros que lhe cobria a face. Tropeçava às vezes em alguma calçada esburacada. Mas disfarçava, sem avermelhar-se, e continuava esguia.

Caminhava por horas ou por minutos. Não fazia conta. Simplesmente caminhava. Há que se pensar que sentia prazer nisso. Mas nada esboçava sobre o neutro reflexo dos olhos. Por vezes, furtava, em pensamento, palavras que outro dissera. Música que ouvira no rádio. Ou mesmo, um poema que colhera ainda nos tempos de escola, n’algum livro do qual não se lembrava o título. Era pouco dada à leitura. Mas gostava das fachadas com letras grandes e ininterruptas.

Sorrir. Os dentes talvez fossem pequenos e amarelados, ela não os mostrava. Quem sabe, sozinha no quarto, ela se sorrisse das paredes velhas de sua casa. Ou dos que tem medo de barata, ou da forma quadriculada dos paralelepípedos que pisava quando passava pelas estradas mais antigas da cidade.

Se acaso ria. Haveria de ser um riso baixo, para que os outros da casa não descobrissem que ela conhecia o mistério de uma coisa tão simples que é sorrir. E chorava? Sozinha ou em público? Há quem pense que não. A vista parecia sempre seca e dura. Não de uma dureza árida de quem é amargurado ou mal, mas uma dureza de quem não sabia como fazê-los doces.

Mas possuía uma ciência formidável. A sublime ciência de inventar. A cada esquina, revelava-se um novo amor, e ela desenhava histórias e pintava romances. Isso é o que lhe dava vida. Talvez fosse o que a fazia caminhar pelas ruas da cidade, rumo sempre a um novo amor escondido.

Andava pelas ruas criando história de todos os que passavam, e contava para si mesma, em segredo. O coração batia forte e sem medo. O vento instigava sua criatividade. E ela seguia sempre inventando amores.

Inventando eternos amores que jamais viveria.