A VISITA

A VISITA
Foto: Núbia Rodrigues

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

APRECIAÇÃO - Melancolia

“Eu era feliz? Não sei. Fui-o outrora agora.” (Fernando Pessoa)

Porque gostar de olhar as gotas de chuva caindo? As gotas não são mais como antigamente. Os ventos fortes, nem as pedras de gelo sobre a grama fina.

O passado de criança é sempre mais doce, com sabor de bala de caramelo misturada ao som daquela música que se ouve de passagem. Que nunca mais se esquece e nunca mais se escuta. As pequenas delícias são o que nos marcam.

Os pequenos prazeres. Ah, pequenos prazeres que excitavam muito mais que o próprio sexo que se faz hoje, mesmo sem amor.

Andar de bicicleta pela primeira vez e cair. Aquelas lágrimas de fracasso não tornam quando da segunda, ou da terceira tentativa se consegue seguir. O sorriso era cristalino. As próprias horas do dia eram cristalinas.

Fechar os olhos, deitado na calçada, e sentir o gosto da vida misturado a marias-moles, sorvete de uva, estórias dos livros da escola, sorriso da primeira professora, amoras colhidas no pé. Ou aquele beijo de coleguinha do lado. À voz da mãe chamando para o café da tarde.

As alegrias de infância têm formas raras e delicadas, impossível tocá-las. Impossível revivê-las. São tênues e muitas vezes despercebidas. Mas lembrá-las dá a impressão de que a vida pode ser menos técnica, menos científica e fria. De que sonhos revivem e esperanças podem ser despertadas.

Lembrar é como uma borboleta colorida, quando pousa ao lado enche de encanto, faz brilhar os olhos secos e brotar, no fundo da alma, uma alegria tão fina, que chega parecer uma dor. Uma suave dor.

Como é bom ser criança e não saber de nada. E ao mesmo tempo ter a astúcia para saber de tudo. E ao mesmo tempo sair correndo e gritando, sem ter vergonha ou pavor. E possuir um segredo e contar a um diário e guardá-lo com uma chave ou uma senha secreta.

Que sinestesia a infância nos dá. Colher uma fruta com as mãos pequenas e pô-la na boca, sem lavar e sem temor. Esse temor que assola essa idade adulta. Que faz ficar preso entre grades e vidros. Essa malícia que torna tudo corrupto. Que pena que o mundo cresce. E a inocência se torna não mais virtude, mas característica daquele que vai levar a pior.

Que bom é ser criança e ter a delicadeza devida com os animais. E possuir esse amor puro, esse coração puro que de toda vaidade está liberto.

Mas é necessário crescer. E há que aprender a se defender, e a gritar mais alto e a sentir vergonha e medo. E a desaprender a sinceridade e é necessário manchar o coração... e é necessário aprender o desamor. Como se a cadeia da vida, cada vez que levasse à velhice enrijecesse o coração. E fizesse perceber que oco ele é e lá dentro não há biologia para sentimentos.

Ah, não era sobre isso que falava quando os amigos imaginários vinham visitar. Falava sobre formigas, as vermelhas que picam doído. Falava sobre figurinhas, desenho animado e coisas que eram sempre de comer, e sempre gostosas. E servia chá para agradar as visitas.

E como o mundo era infinitamente maior, e como as horas eram infinitamente mais longas... Agora, elas passam em turbilhão. Correm desesperadas para além dos relógios. E nada, nada devolve o tempo que passou.

E não é suficiente tomar banho de mangueira no quintal de casa. Nem pular embaixo do chuveiro, nem cantar em frente ao ventilado para produzir aquele efeito sonoro quebrado. Isso não fará resgatar a inocência.

O que há de riqueza verdadeira e a única coisa que se pode preservar é a lembrança. E lembrar sempre até aprender com ela. Aprender o que havia de beleza, o que havia de leveza, de originalidade e sentimento bom. Resgatar o que havia de poesia, de cheiro de terra molhada, do valor que música tinha e o eterno prazer e espanto dos fins de tardes.

A infância era mesmo assim? Pelo menos era assim nessa saudade.

Núbia Rodrigues