A VISITA

A VISITA
Foto: Núbia Rodrigues

sábado, 20 de novembro de 2010

POEMA - EU E MEU PAÍS

Um parangolé da paz dança no vento
Eu e meu país nos descobrimos iguais

Enquanto tento seguir os rastros da multidão

Me vejo perdido

Eu perdido como meu país

Estendo os braços para um céu sem nuvens

O céu do meu país

Que quando mal tinha o que oferecer furtava de outros

Eu que não furto tenho as mãos vazias estendidas ao ar.



Um parangolé da paz baila no vento

Com suas cores encanta

Como um hino de louvor

Mas quem o vê?

Não eu que tenho olhos fixos

Sempre em direção contrária a que vou seguindo se dar por conta


Eu e meu país nos encontramos num intervalo

Ele cuja história se deturpou e se perdeu

Eu, cujo espelho não reflete senão rugas e imperfeições

Nos encaramos sem pudor

E contemplo minha miséria no seu sorriso sem dentes

E contemplo minha dor no seu olhar de festa

Minha fome registrada em suas

Matas densas

Seus números me decodificam

Suas verdades me sugerem

Suas razões me condenam

E sou o meu país em carne e osso

E em osso e carne meu país se derrama como um rio

Nossas cores se misturam e se dividem

Nossas vozes se confundem e se completam

Uma multidão caminha e é só um

Um parangolé da paz se esvai no vento.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

POEMA - Solidão

A solidão que a dor causa
É a solidão de boneca na caixa
A solidão debelada de boneca na caixa
Que criança alguma jamais tocou.

Núbia Rodrigues

terça-feira, 21 de setembro de 2010

ARTIGO - SOBRE A IDIOTICE


Na antiguidade grega, a palavra idiota significava a pessoa que estava alheia às questões do estado, ou seja, as que, por conseqüência da organização social daquele povo, não participavam do processo democrático. Esse sentindo evoluiu, coerentemente, para alienado e hoje engloba uma série de sentidos que definem uma espécie de pessoa que pouco contribui, mas muito atrapalha o processo de evolução social.
As muitas barbáries humanas, como assassinatos, estupros, roubos, terrorismos assustam, destroem e ferem. As tragédias naturais extinguem países e mesmo, civilizações inteiras. Porém, as pequenas barbáries cometidas no dia a dia por conseqüência da idiotice são piores, porque levam, não só à violência física, mas à violência mental, às doenças graves do corpo e do espírito.
E se na antiguidade os idiotas não tinham vez no processo democrático, hoje eles interferem com suas mãos devastadoras e transformam o diálogo em autoritarismo. E tentam transformar o mundo no universo vil a que estão habituados. O idiota de antes não carregava consigo toda a carga destrutiva que o de hoje possui.
Problemáticas sociais e individuais como analfabetismo, fanatismo, inveja, medo, impaciência prejudicam a vida em sociedade. Mas a pior problemática é a idiotice, porque o idiota é surdo por opção e só escuta e entende o que seu nível de capacidade mental e arrogância são capazes de apreender.
O idiota é cego por seleção. E só enxerga o que lhe convém, e usa a visão deturpada sempre para prejudicar, subjugar ou manipular alguém. Os sentidos do idiota estão sempre com direcionamento depreciativo. Desde o tato ao paladar. Pois não sente outro gosto, senão o da desgraça alheia, não toca em algo senão para danificá-lo
De todos os vermes e cânceres que atingem a humanidade, a idiotice é a pior das dores. De todos os problemas sociais e todas as misérias, a idiotice é a mais agressiva. Porque o idiota adultera o ambiente em que habita. Ele agrega todos os sentimentos corruptos, pobres e podres, todas as misérias, todas as moléstias que permeiam o espírito humano.
O idiota é o mais ordinário dos ignorantes, porque, na sua idiotice, não se compreende ignorante, mas sabedor daquilo que não é capaz de assimilar. O idiota é um ser corrosivo, nocivo por natureza. A idiotice é uma doença tão grave, que qualquer esperto, mesmo cético diria: Deus me livre da idiotice.
Núbia Rodrigues

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

APRECIAÇÃO - Melancolia

“Eu era feliz? Não sei. Fui-o outrora agora.” (Fernando Pessoa)

Porque gostar de olhar as gotas de chuva caindo? As gotas não são mais como antigamente. Os ventos fortes, nem as pedras de gelo sobre a grama fina.

O passado de criança é sempre mais doce, com sabor de bala de caramelo misturada ao som daquela música que se ouve de passagem. Que nunca mais se esquece e nunca mais se escuta. As pequenas delícias são o que nos marcam.

Os pequenos prazeres. Ah, pequenos prazeres que excitavam muito mais que o próprio sexo que se faz hoje, mesmo sem amor.

Andar de bicicleta pela primeira vez e cair. Aquelas lágrimas de fracasso não tornam quando da segunda, ou da terceira tentativa se consegue seguir. O sorriso era cristalino. As próprias horas do dia eram cristalinas.

Fechar os olhos, deitado na calçada, e sentir o gosto da vida misturado a marias-moles, sorvete de uva, estórias dos livros da escola, sorriso da primeira professora, amoras colhidas no pé. Ou aquele beijo de coleguinha do lado. À voz da mãe chamando para o café da tarde.

As alegrias de infância têm formas raras e delicadas, impossível tocá-las. Impossível revivê-las. São tênues e muitas vezes despercebidas. Mas lembrá-las dá a impressão de que a vida pode ser menos técnica, menos científica e fria. De que sonhos revivem e esperanças podem ser despertadas.

Lembrar é como uma borboleta colorida, quando pousa ao lado enche de encanto, faz brilhar os olhos secos e brotar, no fundo da alma, uma alegria tão fina, que chega parecer uma dor. Uma suave dor.

Como é bom ser criança e não saber de nada. E ao mesmo tempo ter a astúcia para saber de tudo. E ao mesmo tempo sair correndo e gritando, sem ter vergonha ou pavor. E possuir um segredo e contar a um diário e guardá-lo com uma chave ou uma senha secreta.

Que sinestesia a infância nos dá. Colher uma fruta com as mãos pequenas e pô-la na boca, sem lavar e sem temor. Esse temor que assola essa idade adulta. Que faz ficar preso entre grades e vidros. Essa malícia que torna tudo corrupto. Que pena que o mundo cresce. E a inocência se torna não mais virtude, mas característica daquele que vai levar a pior.

Que bom é ser criança e ter a delicadeza devida com os animais. E possuir esse amor puro, esse coração puro que de toda vaidade está liberto.

Mas é necessário crescer. E há que aprender a se defender, e a gritar mais alto e a sentir vergonha e medo. E a desaprender a sinceridade e é necessário manchar o coração... e é necessário aprender o desamor. Como se a cadeia da vida, cada vez que levasse à velhice enrijecesse o coração. E fizesse perceber que oco ele é e lá dentro não há biologia para sentimentos.

Ah, não era sobre isso que falava quando os amigos imaginários vinham visitar. Falava sobre formigas, as vermelhas que picam doído. Falava sobre figurinhas, desenho animado e coisas que eram sempre de comer, e sempre gostosas. E servia chá para agradar as visitas.

E como o mundo era infinitamente maior, e como as horas eram infinitamente mais longas... Agora, elas passam em turbilhão. Correm desesperadas para além dos relógios. E nada, nada devolve o tempo que passou.

E não é suficiente tomar banho de mangueira no quintal de casa. Nem pular embaixo do chuveiro, nem cantar em frente ao ventilado para produzir aquele efeito sonoro quebrado. Isso não fará resgatar a inocência.

O que há de riqueza verdadeira e a única coisa que se pode preservar é a lembrança. E lembrar sempre até aprender com ela. Aprender o que havia de beleza, o que havia de leveza, de originalidade e sentimento bom. Resgatar o que havia de poesia, de cheiro de terra molhada, do valor que música tinha e o eterno prazer e espanto dos fins de tardes.

A infância era mesmo assim? Pelo menos era assim nessa saudade.

Núbia Rodrigues

terça-feira, 13 de julho de 2010

CONTO - Sobre filmes e bolhas de sabão

Certa manhã acordou e seria Amelie Poulan. Se fosse ainda madrugada saberia contar um mundo em fotografias rasgadas e o compreenderia respeitando cada loucura. A loucura dos outros, não a sua.

Mas era manhã. E o mundo parecia de fato muito iluminado. Certo queimaria a lente dos óculos que o fotografariam. Deixou pra lá e levantou da cama.

Procurava uma espinha no nariz.

Solidão. Fez esquecer como é a voz humana. Gargantas tagarelas que a desculpassem.

Então ficava fitando o espelho. O enorme espelho que nem sabia como foi parar ali, e iluminava os olhos com uma lanterna para ver como é desenhado. Ou para observar o movimento contrátil e retrátil da retina. Isso era um prazer. Ao desligar a lanterna, a sombra que a luz criara continuava incomodando por minutos.

Também gostava de imaginar como seria morar em um formigueiro. A vida enfileirada lhe parecia interessante. Mas um buraco tão ínfimo, certamente não a comportaria. Preferia comer a torta que a tia deixara pronta em cima da mesa.

Era de amora? Não, de maçã. Mas ela gostava de pensar que era de amora, e que ao final, a língua ficaria roxa. Não ficava, mas até o final da torta ela já estava pensando em outras coisas. Sobre como os dentes morderiam se fossem feitos de chicletes, ou se as estátuas do jardim do parque central falavam. Certamente todos sairiam correndo, menos ela. Ficaria para falarem sobre coisas divertidas, como colar caquinha de nariz embaixo da mesa, ou tomar sorvete até dar dor de barriga.

Gostava mesmo é de colecionar palavras. Cada palavra nova que aprendia guardava numa caixinha que tinha dentro da cabeça. De algumas gostava tanto que usava quase todas as vezes que falava, mesmo quando falava sozinha. De outras, gostava tanto, que só repetia na mente, tinha medo que alguém a roubasse, palavras muito, muito bonitas.

À noite, ao se deitar. Não fechava os olhos, ou dormia como qualquer normal. Deixava-se levar por sons estranhos e flutuava numa bolha de sabão, até que a luz do sol a rompia, e ela caia outra vez na cama. Consciente.



Núbia Rodrigues

Rumo das Flores - Flávia Wenceslau


Belíssima canção da cantora nordestina Flávia Wenceslau. Com uma mensagem positiva sobre essa coisa árdua e esquisita que é o mundo. Para quem curte um som sereno e alto astral, é uma boa pedida.
Flávia também guarda em seu repertório outras muito criativas canções. Falando sempre de amor, fé e esperança, temas esquecidos do nosso cotidiano e que por vezes caímos na tolice de considerá-los piegas e ultrapassado. Não são e ainda bem que ainda há alguém que transmite mensagens assim.
Vale a pena ouvir.

sábado, 26 de junho de 2010

POEMA - Silêncio

O silêncio tem sido minha única companhia.
Quando quero conversar, é ele quem me ouve.
Mas se tento ouvir sua voz, ele se esquiva.
Às vezes fico à espreita para escutá-lo...
Ele nada diz!
Mas se finjo não estar ali,
ele fala de coisas que não conheço.
Sensações que nunca senti.
E me arrepia a pele como vento.
O silêncio me invade como se fosse parte de mim.
E o sinto em cada parte do meu corpo.
Entre as pernas.
E fujo das suas sombras, mas ele me persegue.
À noite, quando me deito e fecho os olhos exaustos, do céu do meu teto estrelas derramam sobre meu corpo um brilho imaginário.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

POEMA - Da mais tranquila indignação

Hoje eu precisava ir embora.
Sair de casa como quem sai da casca do ovo.
Sair correndo, voando ou mesmo rastejando
Parar em qualquer árvore morta e colher-lhe o fruto mais amargo.

Mas em vez disso
Eu fico com a necessidade
A incontrolável vontade de sair de casa
Enquanto bordo, costuro e lavo
Palavras que não têm sentido.

domingo, 16 de maio de 2010

Poema - As pernas

Que tragédia!
Eu ainda na fase da espiação.
Com meus bons olhos que são dois
Espreito e estreito na fresta da janela
Elas também são duas
E são belas
E caminham nuas frente a minha janela.

Conto - Os incomunicáveis

Caminhava todas as tardes. Não olhava no relógio. Por isso, nunca tinha hora marcada. Secreta, tímida, de olhos negros e baixos. Em casa, quase não falava. Por medo ou indiferença, sempre fora a mais calada.

Para onde ia? Quem soubesse responder a essa pergunta, certamente a faria mudar de rota, caso existisse alguma. Ia para um lugar distante. Com seu par de olhos, olhava as figuras que se esbarravam pelas ruas. Casas, cães, árvores, tudo era filmado pela dupla de vidros que lhe cobria a face. Tropeçava às vezes em alguma calçada esburacada. Mas disfarçava, sem avermelhar-se, e continuava esguia.

Caminhava por horas ou por minutos. Não fazia conta. Simplesmente caminhava. Há que se pensar que sentia prazer nisso. Mas nada esboçava sobre o neutro reflexo dos olhos. Por vezes, furtava, em pensamento, palavras que outro dissera. Música que ouvira no rádio. Ou mesmo, um poema que colhera ainda nos tempos de escola, n’algum livro do qual não se lembrava o título. Era pouco dada à leitura. Mas gostava das fachadas com letras grandes e ininterruptas.

Sorrir. Os dentes talvez fossem pequenos e amarelados, ela não os mostrava. Quem sabe, sozinha no quarto, ela se sorrisse das paredes velhas de sua casa. Ou dos que tem medo de barata, ou da forma quadriculada dos paralelepípedos que pisava quando passava pelas estradas mais antigas da cidade.

Se acaso ria. Haveria de ser um riso baixo, para que os outros da casa não descobrissem que ela conhecia o mistério de uma coisa tão simples que é sorrir. E chorava? Sozinha ou em público? Há quem pense que não. A vista parecia sempre seca e dura. Não de uma dureza árida de quem é amargurado ou mal, mas uma dureza de quem não sabia como fazê-los doces.

Mas possuía uma ciência formidável. A sublime ciência de inventar. A cada esquina, revelava-se um novo amor, e ela desenhava histórias e pintava romances. Isso é o que lhe dava vida. Talvez fosse o que a fazia caminhar pelas ruas da cidade, rumo sempre a um novo amor escondido.

Andava pelas ruas criando história de todos os que passavam, e contava para si mesma, em segredo. O coração batia forte e sem medo. O vento instigava sua criatividade. E ela seguia sempre inventando amores.

Inventando eternos amores que jamais viveria.

domingo, 18 de abril de 2010

PERFIL - Sobretudo, feliz



Quantos anos você tem? Ela baixa os olhos com olhar de tristeza, pensa um segundo, dá um sorriso tímido e responde: “Eu não sei direito. O Zé diz que é 44, mas eu acho que é 43”. Fazer essa pergunta à Ione Tizzi dos Santos é constrangê-la. – Zé é o marido, José Lopes Silva, 58 anos. - Eles são casados há quase 26 anos. Ela tem cabelos castanhos claros e é baixa. A barriga avantajada parece incomodar. Tímida diante da câmera fotográfica, agita as mãos. Atenta a cada pergunta, que responde com insegurança.
Ione deu à luz a cinco crianças, dessas, apenas três sobrevivem. Todas deficientes. A primeira, Eunice, morreu aos três anos e meio. “Ela ainda nem sentava”. - Pausa para um choro que ela enxuga com a blusa enquanto mostra a fotografia da menina dentro do caixão. - A segunda filha, Ivone, tem hoje 24 anos. O terceiro morreu aos dois meses, antes mesmo que ser registrado. Tinha uma deficiência na perna. O quarto, Edvaldo, tem 21 anos, e a última, Jéssica, mais ou menos 18 anos. Os pais mal sabem a idade da filha. Todos possuem um tipo de deficiência mental.
Ivone é sempre quieta. Toma remédio controlado - Gardenal. Fica a maior parte do tempo pensando, olhando para o horizonte. Amorosa, basta olhar para ela para receber um sorriso singelo. Mas também tem seus momentos de nervosismo. “Não se pode pisar no calo dela”, diz a mãe.
Edvaldo, ou Valdo, como é chamado, é o mais intempestivo. Reclama o tempo todo e fala muitos palavrões. Tem o hábito de levantar o cós do short até o estomago, como se fosse cair. Jéssica é tímida no início, depois começa a se soltar. Quando se acostuma com a visita, se torna espevitada e curiosa. Os três estudam numa escola de ensino especial - Apae – e estão aprendendo a ler e a escrever.
Emotiva, Ione mistura o pranto ao riso ao falar de sua própria vida. Quando sorri, percebe-se a falta de dentes. Chora ao falar que o maior drama de sua vida atualmente é o problema com a prótese dentária, com a qual não consegue se acostumar.
Nasceu em 1965, mas se perguntar em que cidade, ela não sabe responder. Na certidão de nascimento consta Terra Nova do Oeste, São Paulo. Dos sete irmãos, ela é a segunda. Não guarda muitas lembranças da infância. Recorda apenas que sofreu e sempre trabalhou na roça. Foi bóia-fria. Aos 13 anos, morou no Paraná, não sabe em qual cidade, mas lembra que havia uma escola, há uns 300 metros de casa. Porém, a mãe não a deixou estudar. “Acho que só eu fiquei assim. Minha irmã caçula escreve até carta.”, diz, lastimando o analfabetismo.
Aos 18 anos, morando no Mato Grosso do Sul, conheceu José, com quem se casou e mudou para Vilhena, Rondônia. A partir daí perdeu contato com a família. Não sabe se os pais ainda estão vivos, como é a vida dos irmãos, quantos sobrinhos têm ou onde moram. Ela sonha um dia poder reencontrá-los. “Faz tempo recebi uma carta da minha irmã, e nunca mais tive notícias.”. Aponta para a fotografia antiga, na qual aparece ao lado dos irmãos.
Ao vir para Vilhena, passou a ser dona de casa, enquanto o marido trabalhava como operador de máquinas. Morou em Colorado do Oeste, mas o pior lugar em que já morou, conta, foi num Sítio em Comodoro, no Mato Grosso. “Lá era muito difícil. A gente vivia quase isolado, não dava pra ir pra cidade. Sem contar os problemas com água e bicheira que pegou nos meninos.”
De Comodoro, a família retornou para Vilhena em 2004. Moram numa chácara onde cultivam milho, feijão e criam peixes. Ione se considera uma pessoa feliz, no entanto, sua vida não é fácil. Ela vive uma vida de incertezas. A memória está confusa e ela sabe muito pouco de si. Com o marido, luta para aposentar todos os filhos. “Se eu e o Zé faltar pra eles, pelo menos terão como se virar”.
Ione é também esperança. Hoje, conta, que para ser uma mulher mais feliz, precisa resolver o problema da prótese dentária. Extraiu todos os dentes, em 2006, e não se adapta à dentadura. “Vou escrever um e-mail para o programa do Gugu, quem sabe ele me ajuda a fazer um implante”. Conta que a filha caçula é fã do apresentador de TV.
À tarde, os filhos vão para a escola. Para passar o tempo, depois dos afazeres domésticos, Ione se dedica a cultivar flores. A chácara onde mora é repleta delas, o que dá ao lugar um ar charmoso. Na cozinha é desajeitada. Mas mantém tudo sempre bem organizado.
Perguntada sobre seus sonhos e projetos para o futuro, de novo, ela baixa os olhos, dá um sorriso tímido. E diz: “Ah, essa pergunta é difícil. Eu não sei, não”.
Foto: Núbia Rodrigues

APRECIAÇÃO - Sob lábios murchos, gengivas vazias



E como se alguém recitasse “Dentaduras Duplas” aos meus ouvidos.
Rememorei o poema que Carlos Drummond de Andrade publicou na obra Sentimentos do Mundo, em 1940, enquanto ela falava de sua vida desdentada.
Dentaduras duplas:
dai-me enfim a calma
que Bilac não teve
para envelhecer.

Embora ela não seja tão velha – logo que o poema trata da velhice – vi-a transcrita, sem tanta ironia como atribui o poeta ao tema, mas com toda a tragicidade que um grego daria à situação. E, enquanto descrevia a dramática autobiografia, chorava de vergonha e total impotência sobre si mesma.
Não é cartão de visita de novela das 8. Nem sonhos que a escola e a igreja e a sociedade nos pregam. Não está nos livros de histórias infantis.
É a realidade nua e crua, e estava lá, diante dos olhos. E como ela assusta. A automutilação e “todos os dentes extraídos sem dor.” E o eterno abandono da boca.
Despertou-me.
Eu, que pensava um mundo liberto de problemas tão antigos, tão precários.
Despertou-me. Porque, entre livros e teorias, intelectuais não conseguem enxergar sob lábios murchos, gengivas vazias.
Despertou-me. Porque em seus gabinetes, políticos não compreendem a necessidade de gengivas que morder sem saber morder. De beijos que beijam sem saber beijar. De risos que se escondem por vergonha de mostrar o que não há.
Mas, diante desse despertar, revelou-se em mim, a minha estranheza diante de um fato cruel, porém inevitável: a máquina humana em putrefação. Percebo, em mim, um distanciamento que se soma ao asco, frutos da incompreensão.
Que pensar em presença da miserável condição humana diante do mundo, diante do próprio corpo? Nem a arte, nem o dinheiro, nem a filosofia são capazes de fazer compreender, no intimo do ser, a implacável decomposição em vida.

CONTO - O Enigmático Senhor André



Vivia numa cidade cheirando a mato e asfalto. Trabalhava numa repartição pública pouco visitada e cheia de arquivo morto. A 1 hora da tarde ia para casa, tirava o paletó surrado, afrouxava a gravata, media a barriga, e sentava-se para almoçar. Nem beijava a mulher. Filhos não tinha, problemas nos testículos, caiu de um cavalo quando era criança, brincava que esta ainda era a melhor recordação que tinha da fazenda onde seus pais moravam. Trabalhara como burro de carga até os 13 anos, quando foi para casa de uma tia na cidade estudar. Ao terminar o colégio, passou no concurso da prefeitura, conheceu uma mocinha tímida vinda lá do sítio e se casou.
 A mulher era dona de casa. Magra, com uma cara de quem não tinha filhos. Mas tinha. Ela havia tido um menino aos 12 anos, ficara no sítio com o pai. A localidade era perto da cidade. O jovem ia à casa da mãe de vez em quando, mas dava pouca atenção.
 O senhor André sempre implicara muito com isso. Depois do almoço, logo perguntava se o rapaz havia ido visitá-la naquele dia. Pitava um cigarro fedorento todos os dias às três horas da tarde, costumava repetir frases de Fernando Pessoa e tragava a fumaça com prazer.
A convivência com a mulher era incômoda. Os dois se falavam como estranhos. De sexo eles nem mais se lembravam... A idade. Os anos de convivência fez com que a intimidade se transformasse numa coisa muito diversa. A nudez era escassa. Depois de certo tempo, a mulher morria de vergonha de ficar nua na frente do marido. E ele pouco se importava. Sexo só servia para os jovens fazer filhos, como isso ele não podia fazer, perdeu-se a importância.
Mas possuía um segredo, coisa rara naquela cidade de fofoqueiros. Dentro de um quarto pequeno nos fundos da casa, que só ele tinha a chave, ele se enfiava todas as noites, e ficava horas sem querer ser incomodado. A mulher já se acostumara, afinal, eram anos vendo o marido repetir o mesmo ato todos os dias.
Na madrugada, ele ia para cama dormir.
Pela manhã, acordava cedo. A vida de funcionário público era pacata, porém tinha seu preço. Ele ia para o trabalho à pé, logo que era perto de casa e a renda apertada nunca lhe permitira comprar um carro. Se chovesse, ele pegava o guarda-chuva que ficava dependurando na estante de madeira velha no meio da sala. Nunca faltava ao trabalho. Era o seu ritual. Final de semana, ele passava todo o tempo trancado no quarto, saboreando seus mistérios. 
Numa manhã cinzenta a mulher percebeu a falta do marido na cama. Pouco ligou, virou-se para o lado na oportunidade de pelo menos uma vez na vida dormir até mais tarde. Não dormiu. Pensou muitas coisas, ele nunca havia ficado fora da cama a noite toda. Não era preocupação, era só o que havia notado. Não sabia bem o que sentia pelo marido, sabia o que queria que ele sentisse por ela. No fundo, sonhava em ser amada como as mulheres das telenovelas. Cansou de ficar deitada, já que o sono não vinha. Levantou. Antes mesmo de tomar café, dirigiu-se até a porta do quarto secreto, percebeu que estava entreaberta. Os olhos brilharam... Nunca a curiosidade havia lhe embriagado de tal forma, era a chance de sua vida de descobrir o que tirava o sono do seu homem e o impedia de amá-la com toda a plenitude que ela desejava. Entrou. Estava diante dos olhos o segredo que a impedira toda a vida de ser a mulher mais feliz do mundo. Olhou para o chão, o senhor André jazia morto. Sem chances para celebração.